Dráuzio Varela
Reduzida à essência, a vida não passa do "crescei e multiplicai-vos". A diferença fundamental entre o mundo vivo e o inanimado é nossa capacidade de produzirmos cópias de nós mesmos.
Do ponto de vista filosófico, no entanto, existe uma zona fronteiriça entre o universo dos seres vivos e o dos não-vivos: os vírus, partículas de incrível simplicidade, constituídas por um punhado de genes empacotados no interior de uma cápsula formada por substâncias dotadas de atividade bioquímica. Por exemplo, o HIV, causador da Aids, tem nove genes, enquanto nós temos 30 mil.
Essas estruturas rudimentares nem sequer dispõem do aparato necessário para a multiplicação. Para reproduzir-se, são obrigados a invadir células de um ser mais complexo (seja animal, vegetal ou bactéria) e misturar seus genes com aqueles existentes no interior delas de modo que, ao acontecer a multiplicação celular, a maquinaria responsável pela reprodução seja obrigada a copiar involuntariamente as informações contidas nos genes virais e a produzir as proteínas necessárias para a formação de novas unidades do vírus.É como se introduzíssemos um código-pirata num programa de computação, de tal modo que a impressora, ao fazer a leitura do texto original, engasgasse e fosse obrigada a imprimir o texto-pirata inúmeras vezes.
Vistos sob esse prisma, se não são capazes nem mesmo de multiplicar-se por conta própria, propriedade que caracteriza a vida como nenhuma outra, os vírus parecem mais próximos do universo inanimado.Essa visão tornou-se clara a partir de 1935, quando Wendell Stanley conseguiu cristalizar o vírus do mosaico do fumo, agente de uma doença que faz surgir manchas escuras nas folhas de fumo. Através da cristalização foi possível demonstrar que os vírus eram pacotes formados por substâncias bioquímicas complexas, incapazes de exercer as funções metabólicas inerentes à manutenção da vida. Pela descoberta, Stanley recebeu o prêmio Nobel de Química, não o de Fisiologia e Medicina.
A simplicidade das estruturas virais torna o parasitismo essencial à sobrevivência. Enquanto uma bactéria presente no intestino de um mamífero recolhe do ambiente os nutrientes necessários e executa suas funções metabólicas às próprias custas, os vírus são forçados a parasitar praticamente todos os aspectos da vida bioquímica. Poderiam, então, ser relegados à categoria de seres inanimados, eternos parasitas de sistemas metabólicos dos seres vivos?
A tendência atual é levar esse debate filosófico para o campo da evolução, através dos mecanismos de seleção natural enunciados por Darwin e Wallace.Os biólogos que consideram os vírus seres inanimados partem do princípio de que eles não passariam de pequenos fragmentos de DNA ou RNA, por alguma razão "arrancados" dos cromossomos de um ser mais complexo, e que, na ânsia de sobreviver à competição, teriam adquirido a capacidade de construir uma cápsula ao seu redor para protegê-los.
Mas há correntes de pensamento radicalmente opostas. Para seus defensores, os vírus são seres vivos essenciais para explicar a teia que a vida teceu nos últimos três bilhões de anos.
Eles partem do seguinte pressuposto: a maioria do vírus conhecidos é inofensiva ao organismo parasitado. Esses seres encontraram formas de convivência pacífica, através das quais as defesas imunológicas do hospedeiro são neutralizadas por mecanismos incrivelmente engenhosos que a seleção natural privilegiou para oferecer-lhes a oportunidade de persistir em estado de dormência - às vezes, durante anos -, até que as células infectadas decidam entrar em divisão e ler inadvertidamente o código-pirata camuflado em seu interior.
Como a estrutura química dos genes de vírus, bactérias, plantas ou seres humanos é idêntica, genes virais podem colonizar genomas alheios e integrar-se ao patrimônio genético da espécie infectada. A surpreendente biodiversidade dos vírus, sua capacidade de infectar os mais diversos organismos, a velocidade com a qual se multiplicam no interior das células e as mutações sofridas por eles fazem das partículas virais a maior fonte de inovação genética que a vida foi capaz de engendrar em nosso planeta.Podemos considerar inanimadas partículas que interferem de tal forma com o repertório genético de todos os seres vivos? Partículas que introduzem seus genes no interior de genomas-hospedeiros com a finalidade de obter milhões de cópias de si mesmas, mas que, nessa integração, modificam o repertório genético dos organismos infectados por elas?
Pensando assim, será que nossos espermatozóides não funcionariam como vírus gigantes? Com exceção da cauda que os ajuda a nadar, eles também não passam de um pacote de genes envolvidos por uma cápsula. Apesar das habilidades natatórias, só conseguem dar origem a descendentes ao penetrar o óvulo, estrutura muito mais complexa, no interior da qual os genes masculinos são introduzidos no momento da fecundação. Poderíamos dizer que o espermatozóide é um ser inanimado, só porque é incapaz de dividir-se por conta própria?
Afinal, a vida não é o "crescei e multiplicai-vos" a qualquer preço?
Um comentário:
Esse é o Dráuzio Varela. Uma personalidade, pelos seus conhecimentos, pela sua humanidade,pelos seus lindos trabalhos comunitários e como excelente médico que é. Nos brasileiros devemos nos orgulhar muito desse cidadão.
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